''A
democracia, entendida no sentido republicano como uma vida pública saudável e
vibrante que amadurece e esclarece o ego privado, rapidamente se deteriorou sob
os imperativos do crescimento e da guerra''. Alan Wolfe (1985)
Os EUA são os principais representantes
dos valores conquistados pelos meios democráticos. Esses valores foram
idealizados através de um movimento pela construção de uma democracia
republicana com os ideais de liberdade em seus alicerces profundamente
defendidos pela formação política do país em seus primórdios. Sem dúvida quando
se fala em uma democracia mundial, o senso comum destaca primeiramente o modelo
político estadunidense, como se esse modelo fizesse parte de uma doutrina
democrática com seus ideais e valores morais que devem ser seguidos e copiados
para o bom convívio entre os povos. Mas então que democracia é essa que se
comporta como defensora dos ideais e valores democráticos e, ao mesmo tempo,
promove guerras, invasões e massacres disseminando o terror através de uma
gigantesca máquina de guerra, sendo esse país considerado um exemplo de
democracia e liberdade? Os EUA se envolveram, e continuam se envolvendo, em
várias guerras de dimensões catastróficas no planeta na história recente. Prevalece
o sistema de ‘’guerra aos fracos’’ (Ver texto: ‘‘Guerra aos Mais Fracos e
Vulneráveis’’) tragicamente estabelecido
ainda no período da Guerra Fria, ou seja, a guerra direcionada contra estados e
nações fracos e de populações vulneráveis que não podem reagir à agressão á
altura.
Dentro
da complexidade da questão, intelectuais estudam e ocorre produções de trabalhos sobre as características do modelo de democracia dos EUA. O que alguns estudiosos definem, como o
sociólogo estadunidense Alan Wolfe, são as formas, como ocorreu às deformações
dentro do sistema democrático estadunidense e as implicações desse fenômeno que
possibilitou a ascensão de novos atores hegemônicos políticos e econômicos.
Essas novas forças hegemônicas controlam a sociedade daquela que é considerada
a maior democracia desenvolvida do planeta estabelecendo um modelo político e
econômico modernizador, expansionista e perverso. Como já mencionei em outro
texto, a maior parte da oposição ao militarismo dos EUA vem dos cidadãos mais esclarecidos
do próprio país. Vamos então as análises
sociológicas e históricas de Alan Wolfe e
suas abordagens sobre as características da democracia estadunidense e suas implicações
para a sociedade do país e para a humanidade:
‘’Nos EUA, duas concepções de democracia
rivalizaram entre si, uma baseada na noção de república, outra se voltou para a
expansão modernista. Uma forma republicana de governo seria de pequena escala,
regionalista, pacifista, virtuosa, elitista e o modelo democrático era composto
tipicamente por uma classe media, onde os cidadãos decidiriam seu destino por
contratos diretos. Uma republica democrática seria reflexiva, deliberada e
estável, incompatível com uma rápida industrialização ou com preparações
bélicas. Por outro lado, as elites modernizadoras mantinham uma política
nacionalista, belicosa, crescente, dinâmica e desejavam usar o estado para seus
propósitos de expansão militar e industrial. Os nacionalistas precisavam de um
projeto para superar a resistência republicana e o período entre a guerra
Hispano-Americana (1898) e a deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
contribuíram aos seus propósitos pela arte de mobilizações das paixões
populares, implementadas por lideres modernizadores como Theodore Roosevelt e
Woodrow Wilson. Quando as energias democráticas se uniram as tendências
modernizadoras, criou-se uma nova forma de democracia popular irritadiça,
facilmente manipulável e demagógica. A guerra foi o ingrediente essencial para
transformar o republicanismo democrático em democracia perversa (WOLFE, 1985,
p.211-213).
A guerra contribuiu sobre qualquer outro
fator para a expansão da política nos EUA. Essa ‘’organização do entusiasmo’’
conseguiu reunir vastos contingentes de jovens trabalhadores operários e
camponeses para sacrificar suas vidas em combate em todos os cantos do país
para um ‘’bem comum’’. A guerra e a democracia perversa passam a se reforçar
mutuamente. A manipulação desencadeada pela guerra tornou-se um modelo da
dinâmica da opinião publica na democracia moderna. A própria guerra difundiu os
laços uniformizadores e homogeneizadores que constituem os critérios de
cidadania na democracia perversa. A democracia permitia aos despossuídos uma
utopia onde a opressão da vida cotidiana cederia á camaradagem, á dignidade, á
honra e à igualdade entre todos. A guerra contribuiu para esse ideal, mesmo de
forma distorcida. A guerra oferece uma maior gratificação democrática e,
conseqüentemente, um elevado controle estatal e uma maior concentração de poder
na autoridade executiva. A guerra pervertera as demandas democráticas e a
democracia perversa avançaria quando as demandas de crescimento se somaram as
exigências da guerra (WOLFE, 1985, 214).
Nos EUA, o crescimento econômico é um
elemento considerado intrínseco à democracia porque esse crescimento representa
a prosperidade material. Se o crescimento econômico entrar em crise, a
democracia é afetada da mesma forma. Os benefícios adquiridos pela guerra e o
crescimento econômico, simbolizado pelo Produto Interno Bruto – PIB, acentuou o
escopo quantitativo da democracia, mas à custa da sua qualidade. Como descreve Wolfe
no texto Política Perversa e Guerra Fria
(1985), nenhuma sutileza do pensamento político esclarecido sobreviveria ao
materialismo crasso da expansão econômica e a homogeneidade crassa da
militarização:
O estado democrático moderno foi tão amplo na
base quanto estreito em propósitos. As tarefas do estado determinaram o que se
permitiria como demanda democrática, mais do que as demandas democráticas
moldaram o caráter do estado. A vida publica devia girar em torno da guerra e
do crescimento, e a democracia deveria se adaptar a isso. A democracia se
adaptou. Na verdade, uma sociedade de massas composta por indivíduos geralmente não pensantes, freqüentemente ignorantes, complacentemente privatizados, a
expressar sua vontade em atividades publicas descontextualizadas, fragmentadas
e impotentes, de forma a-histórica e muitas vezes contraditória, dificilmente
seria um obstáculo a realização do crescimento e da guerra, e ate parecia a
muitos o sistema mais perfeito possível para realizar esses fins (WOLFE, p.
215, 1985).
Segundo Alan Wolfe, a Guerra Fria
contribuiu inteiramente para transformar a democracia estadunidense de uma
visão republicana para uma revisão modernizada perfeitamente adaptada as lutas
da guerra e as tarefas de expansão do estado. Ao invés de sustar a guerra, a
democracia contribuiu com ela. A união entre a guerra e a democracia perversa
se solidificou com a permanência da tensão internacional, mas foi com as
inovações tecnológicas (incluindo a nuclear) que a se problematizaria a
questão unindo tecnologias militares sem precedentes a uma ignorância política
sem precedentes. Comprimidos entre memórias democráticas e realidades de alta
tecnologia, os estadunidenses se entregam ao fetiche em apoiar as guerras e ao
mesmo tempo se portarem como ‘’pacificadores’’. Na mente do povo, a guerra
ainda tem uma relação com honra e dignidade. Quando se envolve ameaças a segurança
nacional, a sociedade se volta toda ao manto militarista. A oposição invoca o
governo, os sindicatos participam, os meios de comunicação cooperam,
sacrificam-se os orçamentos equilibrados, tolera-se a inflação e aceitam-se os
déficits comerciais. Em suma, nenhuma outra questão é mais manipulável do que a envolvendo a segurança nacional (WOLFE, 1985, p.216-221)’’.
A facilidade da manipulação descrita por Wolfe
é assegurada por um enorme mecanismo de controle econômico, educacional e midiático.
As vítimas desse sistema são inúmeras, desde os trabalhadores recrutados como
soldados do país (Os soldados que morrem nas guerras são, geralmente, das
classes mais pobres da população dos EUA) até os infelizes habitantes das regiões
assoladas pela guerra ao redor do mundo. Nos dias atuais, a sociedade dos EUA
permanece em sua nostalgia delirante e perigosa da dogmática segurança
nacional. Como afirma Wolfe, a ampliação da guerra e o crescimento da
democracia perversa seguem juntos. É ‘’a barraca militar, onde todos
dormem lado a lado’’. Quando as guerras de hoje terminar, certamente, outras
irão começar, resta saber quem serão as próximas vítimas da hegemônica máquina
de guerra mundial. A grande mídia já atua na preparação do terreno para novas investidas militares sempre nas áreas mais pobres do planeta.
Referências:
-WOLFE, ALAN. Política Perversa e
Guerra Fria. Coletânea de textos: Exterminismo e Guerra Fria. Editora
Brasiliense. São Paulo, p. 206-237. 1985
-Foto: Massacre de Mi Lay, Vietnã (1968) :
MUNDIAL,
COPYRIGHT. O Livro da Vida: Morte
por Atacado. Londres: Marshal Cavendish Limited, 1971. P. 2362-2367.